Por Marina Maria*
Entre 6 e 8 de junho, será realizada no Brasil a I Conferência Nacional GLBT, que estima mobilizar 600 participantes, sendo 60% representantes da sociedade civil organizada e 40% do poder público. Entre os objetivos deste encontro estão propor políticas públicas e elaborar o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros.
A realização desta conferência deve ser situada no marco de uma larga tradição brasileira de participação e monitoramento das políticas públicas, inaugurada com a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, em pleno momento da redemocratização. Desde então, iniciativas similares foram replicadas em outros campos, como nos direitos da criança e do adolescente, pessoas com deficiência, assistência social, educação e direitos humanos. Em especial, nos últimos seis anos, se estenderam também para segurança alimentar, políticas públicas para as mulheres e igualdade étnica e racial.
Mesmo contra esse pano de fundo, a I Conferência Nacional GLBT tem um significado inédito por abordar uma área de políticas públicas que, até muito pouco tempo atrás, era objeto (e ainda é) de grande controvérsia, seja no âmbito institucional, seja na própria sociedade. Desta forma, esta conferência deve ser compreendida como resultado da reivindicação e pressão da sociedade civil frente ao governo federal.
A participação de organizações sociais neste processo tem sido crucial porque são elas que possuem acúmulo de experiência para conceber a moldura da conferência – a partir de suas redes e articulações – e assegurar que ela seja, de fato, produtiva. Ou seja, que signifique um diferencial no debate sobre direitos humanos e políticas públicas para a comunidade LGBT brasileira.
Entre outros temas, a conferência vai discutir a incorporação, por parte do Judiciário, de doutrinas mais relativas ao direito homoafetivo, visando a contribuição deste poder na garantia da eqüidade de direitos e dignidade das pessoas LGBT. Segundo Beto de Jesus, secretário para América Latina e Caribe da ILGA – International Lesbian and Gay Association, e Julian Rodrigues, do Instituto Edson Neris e membro da Comissão Organizadora da Conferência:
– A Conferência será o momento para dizer ao Congresso Nacional que ele tem uma dívida histórica com a população LGBT. Até hoje, não, há, no Brasil, nenhuma lei que equipare os direitos das lésbicas, gays e pessoas trans aos direitos das demais pessoas. Além disso, lutamos por uma lei que equipare a homofobia ao racismo, punindo as discriminações e agressões aos LGBT, ressaltam eles.
Ao mesmo tempo, Jesus e Rodrigues lembram que a realização deste encontro implica, necessariamente, em tensões e desafios. Entre estes, identificam a falta de vontade política, em grande parte dos estados brasileiros, para formular e implementar políticas para pessoas LGBT:
– A maioria dos estados não tem nenhuma formulação ou política para a população LGBT. Além disso, diferentemente de outras conferências do mesmo tipo, não há uma regra de que estados e municípios convoquem obrigatoriamente evento preparatórios. Assim, a primeira grande dificuldade é fazer com que governadoras/es convoquem as conferências estaduais. O prazo para essa convocatória é a primeira quinzena de março, mas apenas metade dos estados se mobilizou neste sentido, observam Jesus e Rodrigues.
Além disso, eles também destacam outras tensões:
– Tanto em nível nacional quanto estadual, o movimento social é exigente e tem feito muito um esforço para que o evento seja vitorioso. Isso contrasta com limites e precariedade observados no âmbito do poder público e a homofobia institucional, consolidada historicamente.
Por outro lado, para Jesus, a conferência traz inovações fundamentais com relação às regras de participação:
– A perspectiva de gênero é o que determina o marco de análise crítica da homofobia e as regras de participação. Foi estabelecido, então, que 50% das/os participantes sejam do gênero feminino, ou seja, não apenas mulheres (no sentido biológico) – sejam elas lésbicas ou bissexuais –, mas também mulheres transexuais e travestis. A mesma regra vale para a participação masculina, que contabiliza homens transexuais, bissexuais e gays. Essas regras também incluem a participação de heterossexuais aliadas/os que lutam a favor dos direitos LGBT, como pesquisadoras/es, advogadas/os, psicólogas/os, assistentes sociais, etc.
Ainda na avaliação de Jesus, esta inovação quanto às regras de participação gera outras contribuições ao processo da I Conferência Nacional GLBT:
– Essa inovação sinaliza para a superação possível da cilada das identidades. Há vários anos, muitos/as de nós acreditamos que é preciso lutar por políticas públicas inclusivas que reconheçam os marcadores identitários (raça/etnia, geracionais, identidade de gênero e/ou orientação sexual, origem, etc.). Mas, ao nosso ver, a defesa fragmentada desses marcadores é uma cilada, pois limita a possibilidade de articulação mais ampla. Vale sempre lembrar que todas/os somos uma mistura de todos esses marcadores. Essa perspectiva contribui para a compreensão da universalidade dos direitos humanos. Lamentavelmente, constatamos, em muitos casos, uma defesa ferrenha das identidades, por efeito da agenda dos financiadores e da disputa por recursos financeiros, finaliza ele.
Os Princípios de Yogyakarta na I Conferência Nacional GLBT
Durante a conferência e, atendendo a uma reivindicação de organizações e redes atuantes na defesa dos direitos de pessoas LGBT, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, por meio do Programa Brasil sem Homofobia, distribuirá às(aos) participantes exemplares dos Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. A expectativa é compartilhar um instrumento importante no combate a formas de discriminação baseadas na orientação sexual e na identidade de gênero. “A disseminação dos Princípios de Yogyakarta reforça o entendimento de que essa luta é transnacional, que está conectada à luta de direitos humanos e evidencia para os estados e municípios que as questões das orientações sexuais e identidades de gênero não são menores na luta dos direitos humanos, como ainda pensam alguns/as gestores/as, devido à influência fundamentalista e a pouca compreensão de que o Estado é laico”, avaliam Jesus e Rodrigues. Para eles:
– É de fundamental importância que os grupos LGBTs se apropriem dessa linguagem mais universal dos direitos humanos e que isso possa subsidiar suas ações de advocacy junto aos/às tomadores/as de decisão na implementação das políticas públicas.
E mais:
Leia artigo de Daniel Sarmento, Procurador Regional da República e professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sobre os Princípios de Yogyakarta, e veja mais informações no site do SPW.
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* Marina Maria é jornalista e assistente de projetos do Secretariado do Observatório de Sexualidade e Política
:: Publicado em 31/03/2008 ::